
“Bichos”, de Miguel Torga foi escrito em 1940 e continua hoje a ser leitura obrigatória e uma das obras mais importantes da nossa literatura.
Compreende-se melhor o livro se for lido até ao fim – aliás o que deve acontecer com todos os livros, creio. Pois cada capítulo é um animal diferente (também entram humanos) e a sua história. Quais são esses animais?
O cão Nero, o gato Mago, Madalena, humana, Morgado, um burro de carga, Bambo, um sapo encantador, Tenório, o gato, Jesus, um menino que rouba um pintassilgo do seu ninho e fica com ele, Cega-rega, formiga, Ladino, um pardal manhoso, Ramiro, cordeiro, Farrusco, um melro com uma vida agitada, o Miura só poderia ser um touro, o senhor Nicolau, um amante de insectos e, finalmente, o Vicente, o corvo que, com determinação, alcança a liberdade em luta com Deus.
O meu bicho preferido é o Vicente mas não vou contar-vos a história; terão que ler o livro, não como castigo mas como uma bênção.
Mas, sobre o Vicente, tenho uma história pessoal para vos contar.
Antes de 1974 trabalhava na Emissora Nacional (hoje RDP), e estava apaixonado pelo Vicente. Escrevi ao dr. Adolfo Rocha (nome do pseudónimo Miguel Torga) a pedir autorização para o adaptar à Rádio. Ele disse que sim, sem exigências, pois sabia bem o que me iria acontecer: a direcção da EN recusou a minha proposta por “não ser oportuno”. Passaram-se dois anos e veio Abril com uma revoada de cravos vermelhos. Nunca tal se tinha visto. Aproveitei o momento para pedir de novo a Miguel Torga a autorização almejada. Desta vez deu-a com uma condição: “Queria ler primeiro a adaptação para a Rádio.”Enviei-lhe pelo correio a adaptação e, pelo telefone. pedi-lhe que fosse ele a ler aquele extraordinário prefácio do livro. Recusou. Escrever era com ele; falar não. Pedi-lhe uma manhã livre para o visitar, o que ele acedeu.
Cheguei a Coimbra com o meu colega técnico de som Espírito Santo (coincidência apenas, não mão divina a ajudar-me!).
Mandou-nos entrar, ofereceu-nos café ou chá e depois fizemos um trato (como dizem os nossos irmãos brasileiros): ele gravaria o prefácio, depois ouvia a gravação e, se não gostasse, logo em seguida a apagaríamos. “Está bem”, respondeu simplesmente. Começámos a gravar. Não se enganou, não parou, não houve telefones a tocar, portas a bater nem crianças a chorar. Tudo tinha parado para que Miguel Torga, pela mão técnica de Espírito Santo, gravasse com calma as belas palavras do seu prefácio.
O trato cumpriu-se. Miguel Torga ouviu a gravação e viu-nos de olhos brilhantes. Disse perguntando: “Saiu bem, não saiu?” Perante a nossa reverente concordância, ele disse que sim, senhor, que eu podia pô-lo na adaptação.
Mais tarde gravei de novo a adaptação na Rádio Moçambique, incluindo o prefácio pelo autor.
Há uns anos, a TSF levou alguns dias a falar de Miguel Torga. Mandei ao locutor Fernando Alves uma cópia do prefácio. Não acusou a recepção nem agradeceu. Mas isto é outro filme.
Como apontamento final, gostaria de saber se o arquivo histórico da RDP tem este prefácio lido pelo autor.
Alvaro Belo Marques
Foto :
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